Novos Tempos

D. Marcela morava em uma casa verde, de janelas e portões brancos, decorada com um belo jardim de inverno nos fundos, bem ali na Rua dos Engenheiros. Os meninos da rua diziam coisas horríveis a seu respeito, como é do feitio de meninos que brincam nas ruas. Segundo eles, D. Marcela nascera numa época onde eram mais comuns nomes como Caim, Aarão, Noé, e Moisés. Mas até aí, se fosse pra você acreditar nos meninos da rua, você teria que estar disposto a admitir que D. Marcela era uma bruxa, que a moradora do nº 55, no final da rua, tinha seis dedos em cada pé, que a Dra. Iolanda era amante de um padre e que o filho do Wander Delegado era o menino mais magro do mundo. No entanto, é fato que D. Marcela não se parecia muito com uma Marcela. Não tinha cara, jeito ou idade de Marcela. Tinha mesmo um ar de Maria, de Carlota, de Joana. Algum nome desses que conotam cheiro de naftalina no fundo do armário e chá de boldo. Mas se você perguntasse a qualquer um na Rua dos Engenheiros onde mora a D. Marcela, todos poderiam facilmente te apontar a casa verde de janelas brancas. Aliás, outra coisa que todos poderiam facilmente apontar era o quanto D. Marcela era simpática e amigável. Estava sempre sorrindo seu sorriso cheio de dentes falsos, usava vestidos estampados com flores de cores berrantes e fazia questão de preparar um surpresa no dia das bruxas para divertir as crianças da rua. Ela fazia parte da comunidade. A suas peculiaridades só colaboravam para sua reputação e reconhecimento.

D. Marcela morava sozinha. Raramente ela podia ser vista com um lindo gato branco de manchas pretas (com o qual, segundo as crianças, ela conversava), mas, fora isso, ninguém. Ela passava os dias com seu rádio ligado, cantando algumas músicas que conhecia, fazendo compotas de doces e tempêros, que eram o seu ganha pão. O ritual era conhecido e se repetia várias vezes ao dia, todos os dias. Os motoristas das madames paravam seus carros enormes na porta da pequena casa verde, elas entravam na casa escondidas debaixo de chapéus de abas largas e óculos escuros – mesmo quando a moda não pedia chapéus de abas largas ou óculos escuros – e logo depois saíam, cheias de sorriso no rosto e potes de compotas no colo. O carro arrancava e D. Marcela aparecia em uma das janelas da sua casa, toda simpática, observando os motoristas sumirem depois da curva no final da rua.

Os outros moradores dos quais as crianças faziam troça logo se mudaram dali. Vários antes das crianças deixarem de ser crianças. Como a Dra. Iolanda, por exemplo, que assumiu o namoro e se mudou com o já então ex-padre para Santa Catarina. Outros viram os meninos e meninas da rua crescerem e se multiplicarem. Alguns foram embora para a capital, outros se mudaram para cidades onde acreditavam que a vida seria melhor. A última vez que os moradores da rua viram a D. Marcela foi no funeral do filho do Wander Delegado, enterrado alguns anos antes da Rua dos Engenheiros passar a se chamar Rua Aureliano da Costa Machado.

O crescimento da cidade e a criação do bairro das indústrias afastado do centro comercial trouxeram uma importância estratégica para a antiga Rua dos Engenheiros. A especulação imobiliária tirou dali os últimos moradores originais, deixando apenas a casa verde da D. Marcela como recordação de uma época que já não mais existia. Sua residência foi cercada por grandes prédios estéreis, cheios de apartamentos. Grandes prédios cinzas e sem vida, bloqueadores de luz solar. À sombra, a fertilidade do seu jardim de inverno foi destruída. Sem matéria prima, suas clientes começaram a desaparecer e eventualmente passaram a ser outra recordação perdida na história da rua. Todas as imobiliárias que atuavam na cidade a procuraram e fizeram ofertas tentadoras, seguidas de garantias absurdas e recheadas de quantidades obscenas de dinheiro. D. Marcela atendia a todos com o mesmo carinho com o qual atendia as suas clientes. Depois de ouvir cada um pacientemente, ela negava as ofertas, os presenteava com um potinho de compota e um sorriso de dentadura, e os acompanhava até a porta da rua. Por anos D. Marcela repetiu esse mesmo ritual, várias e várias e várias e várias vezes. Escutava. Negava. Presenteva. Despachava.

Quando a instituição de ensino superior da cidade adquiriu o estatus de Centro Universitário e a procura dos novos estudantes por imóveis para alugar cresceu exponencialmente, as ofertas à D. Marcela deixaram de ser ofertas e passaram a ser ameaças. Daí pra deixarem de ser ameaças e passarem a ser ações não demorou muito.

D. Marcela estava dormindo quando o trator amarelo desferiu o primeiro golpe em sua casa. Ela também estava a quilômetros dali, se despedindo de suas amigas, que se regozijavam bebendo em nome dela. Ela estava do outro lado da cidade, dando instruções ao gato malhado sobre como e onde ele poderia achar comida de qualidade. Ela estava se deitando uma última vez com todos os homens que fizeram parte da sua vida.

O teto da casinha verde foi arrancado em uma única tacada. O céu da madrugada se encheu de poeira quando o segundo trator entrou em ação.

D. Marcela conversava com os espíritos dos antigos homens dos mares sobre as vantagens de passar o além vida navegando nas nuvens. Em várias partes diferentes do planeta, D. Marcela visitava os antigos meninos e meninas da rua e os presenteva com amuletos e orações de proteção, ambos cheios de palavras escritas e pronunciadas em línguas esquecidas. Ela gostava daquelas crianças. Foram as únicas que descobriram que era ela bruxa e ainda assim – talvez até por causa disso – gostavam dela. D. Marcela se certificou de que todas tivessem vidas cada vez mais felizes dali pra frente.

Do outro lado da rua, em frente à casa verde, vestindo um dos seus inconfundíveis vestidos estampados, D. Marcela distribuía compotas para os empreiteiros. Suas últimas compotas, feitas especialmente para aqueles trabalhadores.

No relatório que eles escreveram sobre noite de trabalho, a casa já estava abandonada quando começaram a demolição.

Nenhum registro foi feito relatando o enterro do corpo de uma senhora numa vala comum.

Nenhum trabalhador sobreviveu às compotas envenenadas que D. Marcela distribuiu na última noite que ela andou entre os vivos.

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